Leishmaniose Visceral Canina: Perguntas e respostas

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1. O tratamento da LVC oferece risco à saúde humana?

A Leishmaniose Visceral (LV) é uma doença parasitária transmitida por um inseto vetor.
Assim como toda doença de transmissão vetorial, a LV tem uma cadeia epidemiológica complexa, que depende de uma associação de fatores para se estabelecer em um determinado ambiente, razão pela qual não pode ser tratada pontualmente.
Dessa forma, o tratamento da LV, se considerado de modo isolado, não interferiria na saúde humana. Contudo, como a LV é, também, uma zoonose, a presença do vetor permite a transmissão de um cão infectado para outro cão ou para o ser humano.
Nesse cenário, existe efetivo risco para a saúde humana e canina quando cães doentes são mantidos em ambientes com características favoráveis à presença do vetor (exemplo: áreas com acúmulo de lixos e outros tipos de matéria orgânica nas quais existam animais de criação em ambientes sem limpeza diária, tais como galinheiros, ou em áreas próximas às matas, rios, lagos etc).
Outro fator a ser considerado é a possibilidade de o tratamento canino acarretar o desenvolvimento de resistência do agente Leishmania. Estudos experimentais indicam que parasitos isolados de cães apresentam baixa susceptibilidade às principais drogas comumente utilizadas no tratamento da Leishmaniose Visceral Humana (LVH)1 . Isso indica, pois, que a manutenção desse parasita vivo, aliada à possibilidade de transmissão da LV na presença do inseto, pode levar uma pessoa a se infectar com um parasito resistente às drogas utilizadas no tratamento da LVH.

2. Qual o procedimento mais adequado?

Em relação às medidas individuais, ou seja, que não dependem dos serviços de saúde, o melhor procedimento é a prevenção: cuidar e limpar do ambiente interno e externo das casas para evitar a presença do vetor, de modo a evitar as características mencionadas no item anterior.
Em relação à LVC, da mesma forma, deve-se evitar que o animal adoeça: levar o cão regularmente ao médico veterinário, mantendo-o saudável e bem alimentado; manter o local onde ele fica sempre limpo; usar telas de malha fina nos canis, pois o vetor só tem 3mm de diâmetro; usar coleiras impregnadas com piretróides obedecendo as recomendações dos fabricantes e prazo de validade; usar repelentes à base de piretróides em todo corpo do animal quando não for possível evitar a exposição do cão ao ambiente externo depois das 17h; vacinar o cão com vacina anti-LVC obedecendo as recomendações do fabricante e validade, mas só fazer isso após exame sorológico do cão para confirmar que o animal não está doente e usando as medidas preventivas mencionadas para poder vacinar o cão com segurança, pois nenhuma vacina é 100% eficaz.
Observação: As vacinas são e sempre foram ferramentas de prevenção, não há nada que comprove e nem que licencie seu uso como tratamento!

3. Quais são os transmissores da doença?

A LV é transmitida por um flebotomíneo específico, inseto muito pequeno (3mm), alado e de voos curtos. Tem características que o assemelha aos mosquitos, mas suas larvas se desenvolvem no solo úmido e em matéria orgânica (não na água, como os mosquitos comuns).
No Brasil apenas duas espécies têm importância em saúde pública: Lutzomyia longipalpis, que pode ser encontrado em todo País; e Lutzomyia cruzi, restrito ao estado do Mato Grosso do Sul.
Embora diversos estudos apontem outras espécies de Lutzomyia como transmissores da LV (exemplo: Lutzomyia mignei), tais estudos ainda estão em andamento.

4. Os cães são os principais transmissores da Leishmaniose?

Não! A transmissão da LV se dá com a fêmea do vetor. Os hospedeiros e reservatórios (como os cães) não transmitem a LV!
Os cães são considerados o principal reservatório urbano. Isso porque suas características imunológicas e bioquímicas permitem uma alta multiplicação do parasito nos órgãos hematopoiéticos, o que garante uma concentração significativa de parasitos na circulação periférica do animal e, por consequência, facilita que o parasito seja sugado por um flebotomíneo na ocasião do repasto sanguíneo.
Observação: a multiplicação e concentração do parasito e sua sucção pelo flebotomíneos independem do desenvolvimento dos sinais e sintomas clínicos da doença.

5. Quais animais adoecem? Apenas os cães?

Comprovadamente e com reconhecimento do ponto de vista epidemiológico, além dos cães domésticos, apenas as raposas e os marsupiais (como o gambá) podem adoecer de LV.
Todavia, é importante ressaltar que os flebotomíneos se alimentam de muitos outros animais, embora esses não adoeçam de LV. Isso, pois, permite a sobrevivência do inseto em ambientes não cuidados e, portanto, a manutenção do ciclo de transmissão da LV mesmo em locais em que não existam cães ou raposas (tais como galináceos, bovinos, equídeos, pequenos ruminantes e suínos).

6. Como acontece o processo de infecção?

A fêmea do inseto vetor pica um hospedeiro infectado e, com o sangue, o inseto suga o parasito (Leishmania infantum-chagasi). O ciclo é completado no intestino do vetor, que, por sua vez, injeta o parasito em um novo hospedeiro quando se alimenta de sangue novamente.

7. A incidência da doença ainda é alta no Brasil? Quais medidas estão sendo tomadas para conter a LV?

A incidência e a prevalência da doença em humanos e em cães no Brasil são altas.
As medidas de controle da LV no País são padronizadas pelo Ministério da Saúde (MS) e são preconizadas e implantadas pelos serviços estaduais e municipais de saúde. Essas medidas estão disponíveis no site do Ministério da Saúde no Manual de vigilância e controle da LV2 .

As medidas de controle incluem:

5.1. Diagnóstico precoce e tratamento dos casos humanos: as Secretarias Municipais de Saúde, com o apoio das Secretarias de Estado de Saúde, têm a responsabilidade de organizar a rede básica de saúde para suspeitar, assistir, acompanhar e/ou encaminhar os pacientes com LV à referência hospitalar;

5.2. Diagnóstico precoce e eutanásia dos casos caninos: a prática da eutanásia canina é recomendada a todos os animais sororreagentes e/ou parasitológico positivos. Para a realização da eutanásia, deve-se ter como base a Resolução CFMV nº 1000, de 11 de maio de 2012, que dispõe sobre os procedimentos e métodos de eutanásia em animais e dá outras providências;

5.3. Monitoramento e controle químico do vetor e manejo ambiental: a indicação das atividades voltadas para o controle vetorial dependerá das características epidemiológicas e entomológicas de cada localidade. As recomendações propostas para cada área estão descritas conforme a classificação epidemiológica;

5.4. Educação em saúde: as atividades de educação em saúde também devem estar inseridas em todos os serviços que desenvolvem as ações de controle da LV, requerendo o envolvimento efetivo das equipes multiprofissionais e multiinstitucionais com vistas ao trabalho articulado nas diferentes unidades de prestação de serviços, por meio de: divulgação à população sobre a ocorrência da LV na região, alertando sobre os sinais clínicos e os serviços para o diagnóstico e tratamento; capacitação das equipes, englobando conhecimento técnico, aspectos psicológicos e prática profissional em relação à doença e aos doentes; adoção de medidas preventivas considerando o conhecimento da doença, atitudes e práticas da população, relacionada às condições de vida e trabalho das pessoas; estabelecimento de relação dinâmica entre o conhecimento do profissional e a vivência dos diferentes estratos sociais através da compreensão global do processo saúde/doença, no qual intervêm fatores sociais, ambientais,econômicos, políticos e culturais; incorporação das atividades de educação em saúde voltadas à leishmaniose visceral dentro de um processo de educação continuada; desenvolvimento de atividades de educação em saúde junto à comunidade; estabelecimento de parcerias buscando a integração interinstitucional;

5.5. Medidas de proteção individual: uso de mosquiteiro com malha fina, telagem de portas e janelas, uso de repelentes; não exposição em horários de atividade do vetor (crepúsculo e noite) em ambientes onde este habitualmente pode ser encontrado;

5.6. Saneamento ambiental: manejo ambiental, por meio da limpeza de quintais, terrenos e praças públicas, a fim de alterar as condições do meio que propiciem o estabelecimento de criadouros de formas imaturas do vetor. Medidas simples como limpeza urbana, eliminação e destino adequado dos resíduos sólidos orgânicos, eliminação de fonte de umidade, não permanência de animais domésticos dentro de casa, entre outras, certamente contribuirão para evitar ou reduzir a proliferação do vetor;

5.7. Controle da população canina errante: a rotina de captura de cães errantes é essencial, especialmente em áreas urbanas, por ser fonte disseminadora de diversas doenças de importância médico-sanitária. A captura deve ser realizada rotineiramente pelo município de acordo com as normas estabelecidas no código sanitário;

5.8. Doação de cães: em áreas com transmissão de LV humana ou canina é recomendado que, previamente à doação de cães, seja realizado o exame sorológico canino. Caso o resultado seja sororreagente medidas de vigilância e controle , deverão ser adotadas, conforme disponibilizado no Manual elaborado pelo Ministério da Saúde3 ;

5.9. Vacina antileishmaniose visceral canina: atualmente existe uma vacina contra a leishmaniose visceral canina registrada no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Todavia, não há constatação de seu custo-benefício e efetividade para o controle de reservatório da leishmaniose visceral canina em programas de saúde pública;

5.10. Uso de telas em canis individuais ou coletivos: os canis de residências e, principalmente, os canis de pet shops, clínicas veterinárias, abrigo de animais, hospitais veterinários e os que estão sob a administração pública devem obrigatoriamente utilizar telas do tipo malha fina, com objetivo de evitar à entrada de flebotomíneos e, consequentemente, reduzir o contato com os cães;

5.11. Coleiras impregnadas com Deltametrina a 4%: a utilização de coleiras impregnadas com deltametrina 4% serve de medida de proteção individual para os cães contra picadas de flebotomíneos.

Observação: As medidas de controle devem estar implantadas e ser realizadas de forma integrada!

8. A Portaria Interministerial nº 1.426/2008 (dos Ministérios da Saúde e da Agricultura) ainda tem validade?

A Portaria Interministerial nº 1426/2008 permanece integralmente válida em todo o País.
Isso porque não existe qualquer decisão judicial que, no âmbito nacional, a tenha anulado ou reduzido a sua aplicabilidade.
A única ação de âmbito nacional que pretendia a anulação da Portaria Interministerial nº 1426/2008 (proposta pela Anclivepa-MG e pela Anclivepa-Brasil perante a Justiça Federal de Minas Gerais – processo nº 2008.38.00.034291-1) reconheceu a validade e legalidade da citada Portaria, tendo tal decisão transitado em julgado (ou seja, contra ela não cabem recursos).
Registramos que as ações judiciais propostas em 2008 perante a Justiça Federal de Campo Grande por determinada ONG, além de envolverem apenas e tão somente a referida ONG, ainda não foram finalizadas, sendo que a última decisão proferida (proferida nos autos do Agravo de Instrumento nº 0017625-71.2013.4.03.0000, 4ª tgurma do TRF3º), que deve ser considerada e seguida pela ONG, assegurou a validade da Portaria Interministerial nº 1426/2008, tendo, ainda, exigido que a eutanásia de animal soropositivo deve ser precedida de dois testes sorológicos positivos e de laudo técnico elaborado por um médico veterinário do serviço público.
É possível que existam outros processos judiciais individuais que questionem a Portaria Interministerial nº 1426/2008. Todavia, por se tratarem de ações individuais, eventual anulação ou redução do campo de incidência da Portaria produzirá efeito apenas entre as partes envolvidas no citado processo.

9. Se o médico veterinário optar pelo tratamento ao animal infectado, quais penas disciplinares podem ser impostas?

A legislação vigente relativa a medicamentos ou substâncias farmacêuticas dispõe:

a) O art. 3° do Decreto-Lei 467/1969, determina que todos os produtos de uso veterinário, elaborados no País ou importados, e os estabelecimentos que os fabriquem, fracionem, comerciem ou armazenem são obrigados a licenciamento e registro no MAPA;

b) O inciso IV do Art. 10° da Lei 6.437/77 (que configura infrações à legislação sanitária federal, estabelece as sanções respectivas) define como infrações sanitárias extrair, produzir, fabricar, transformar, preparar, manipular, purificar, fracionar, embalar ou reembalar, importar, exportar, armazenar, expedir, transportar, comprar, vender, ceder ou usar alimentos, produtos alimentícios, medicamentos, drogas, insumos farmacêuticos, produtos dietéticos, de higiene, cosméticos, correlatos, embalagens, saneantes, utensílios e aparelhos que interessem à saúde pública ou individual, sem registro, licença, ou autorizações do órgão sanitário competente ou contrariando o disposto na legislação sanitária pertinente;

c) O Art. 273 do Código Penal define como crime falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto (inclusive medicamentos, matérias-primas, insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico) destinado a fins terapêuticos ou medicinais, bem como o uso ou prescrição de produtos não registrados nos órgãos competentes.

Nesse cenário, a Resolução CFMV nº 722, de 2002 (Código de Ética) em seu artigo 13 veda ao Médico Veterinário: “I – prescrever medicamentos sem registro no órgão competente, salvo quando se tratar de manipulação; (…) V – praticar no exercício da profissão, ou em nome dela, atos que a lei defina como crime ou contravenção; (…) VIII – divulgar informações sobre assuntos profissionais de forma sensacionalista, promocional, de conteúdo inverídico, ou sem comprovação científica; (…)”

Assim, o médico veterinário que optar pelo tratamento do paciente, sem prejuízo das medidas de natureza criminal e administrativa perante outros órgãos, responderá a processo ético-profissional e, caso condenado, poderá sofrer uma das sanções disciplinares, quais sejam: advertência confidencial; censura confidencial; censura pública; suspensão do exercício profissional por até 3 meses, ou; cassação do exercício profissional.

10. Qual o posicionamento do CFMV quanto à eutanásia dos cães soropositivos para LV?

Do ponto de vista técnico, pela saúde dos cães e dos seres humanos, até que o MAPA licencie uma droga específica para o tratamento LV canina e/ou que o MS autorize o tratamento com as drogas já existentes, o CFMV apoia as medidas de controle preconizadas pelos serviços de saúde, que, como dito, devem ser implantadas de forma integrada.
A soropositividade para LV, além de dever ser precedida de no mínimo dois testes sensíveis e específicos, deve ser diagnosticada por médico veterinário do serviço púbico. Ainda, os métodos para o controle do reservatório canino devem obedecer as Resoluções de bioética e bem-estar animal.
O CFMV é contra a eutanásia indiscriminada de cães sadios ou falso-positivos, contra o sofrimento animal, contra os métodos não autorizados e/ou realizados por pessoas que não tenham a formação em medicina veterinária, contra o abandono animal, contra a posse irresponsável, contra o comércio ilegal de medicamentos e insumos veterinários e contra a falta de iniciativa do governo em encontrar e padronizar medidas para minimizar o impacto da problemática da LVC na população de cães no país, de forma ética e efetiva.

11. O CFMV acredita que, no futuro próximo, poderemos ter acesso a um medicamento de cura para a doença?

O CFMV, assim como os que atuam no bem-estar dos animais e dos homens e valorizam a vida, espera que sim. Contudo, não depende do CFMV. São necessários estudos controlados, sem conflito de interesses, feitos de forma técnica e ética e que tragam resultados consistentes, replicáveis a todos os animais (independentemente do poder aquisitivo dos seus proprietários) e implantáveis no âmbito da saúde pública para acesso de todos.

Faz-se necessário que o serviço público priorize o investimento em saúde preventiva (não curativa) de forma eficaz e integrada, de modo a levar o conhecimento à população. O serviço público deve trabalhar de forma inter e multidisciplinar com todos os profissionais envolvidos na saúde pública, bem como colocar em prática as diretrizes da Atenção Básica, merecendo destaque os NASFs (Núcleos de Apoio à Saúde da Família).
Os órgãos sanitários devem trabalhar juntos, em prol de uma saúde única, de um sistema único de fato e de efeito.
São necessários mais investimentos e incentivos por órgãos públicos e privados e indústrias farmacêuticas para que as pesquisas possam ser concluídas e tenham efeito prático.
Em resumo, é preciso valorizar a vida, não os interesses!
O CFMV é a favor de “um mundo, uma saúde” e apoiará e contribuirá sempre, de forma ética e legal, em prol da saúde única, porque a saúde inclui também a saúde animal e ambiental e não pode e não deve ser tratada como uma ferramenta política ou econômica.

Fonte: Serviço Público Federal. Conselho Federal de Médicina Veterinária.

Referências:
1 Maia C, Nunes M, Marques M, Henriques S, Rolão N, Campino L. In vitro drug susceptibility of Leishmania infantum isolated from humans and dogs. Exp Parasitol. 2013 Sep;135(1):36-41; Aït-Oudhia K, Gazanion E, Sereno D, Oury B, Dedet JP, Pratlong F, Lachaud L. In vitro susceptibility to antimonials and amphotericin B of Leishmania infantum strains isolated from dogs in a region lacking drug selection pressure. Vet Parasitol. 2012 Jul 6;187(3-4):386-93; Carrió J1, Portús M. In vitro susceptibility to pentavalent antimony in Leishmania infantum strains is not modified during in vitro or in vivo passages but is modified after host treatment with meglumine antimoniate. BMC Pharmacol. 2002 May 2;2:11; Gramiccia M1, Gradoni L, Orsini S. Decreased sensitivity to meglumine antimoniate (Glucantime) of Leishmania infantum isolated from dogs after several courses of drug treatment. Ann Trop Med Parasitol. 1992 Dec;86(6):613-20.

2 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de vigilância e controle da leishmaniose visceral – Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2006. 120p.

3 http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_vigilancia_controle_leishmaniose_visceral.pdf

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